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A história da Paulina

 

Ao erguer-se a manhã, os pássaros saudavam o dia, saltando dos incensos e faias e desenhando em bandos, curvas longas até à costa.

Aos poucos os camponeses vão-se levantando. O ritual era sempre o mesmo: passar, rapidamente,as mãos pela cara, com água retirada do tanque com um balde de mão e colocada na bacia de esmalte do lavatório de madeira do balcão da cozinha. Ninguém receava ser visto pelos vizinhos que procediam ao mesmo ritual.

« As minhas sopas de café, estão feitas? » reclamava, com voz autoritária e rouca do tabaco da terra, o marido da Paulina. « Já estão ao pé do lar, homem! Hás-de cramar até morrer, louvado seja o Senhor!... »

Amanhada a égua que passara a noite na loja, o Antonico partia, tocando a alimária que a custo subia a ladeira, desviando-se das relheiras sulcadas ao longo de séculos por carros de bois, carregados de milho ou de barrís de vinho.

Homem que se preze, tem um cavalo à medida dos seus haveres e vai com ele até à igreja, pensava o Antonico, corpo alto e robusto, que na América arrecadara um bom pé de meia. Na freguesia, era um Senhor respeitado. Trajava, diariamente, alvarozes, que seguravam uma corrente de ouro de onde pendia um rico relógio de bolso que ostentava em público. A sua abastança transparecia também nos dentes de ouro.

Como outros jovens, Antonico partiu para a América nos anos 20 e por lá  fez fortuna. A mulher ficou na ilha e teve de tratar de si, enquanto o seu homem não regressava. Tornou-se costureira, ofício de mulher séria e honrada.

Mal o sol despontava, junto à ponta do Topo, Paulina saltava da cama para adiantar a lida da casa: acender o lume do lar, fazer o comer do marido,  tratar dos bichos e da lida da casa e adiantar a ceia que o dia é grande e à noite o homem quer a mesa posta, com conduto. Não sendo dia de acender o forno para cozer uma fornada de pão de milho e bolo, a Paulina trajava-se e, de rodilha à cabeça, com a sua velha Singer que comprara a muito custo, lá ia vereda abaixo, a casa da menina Luísa, desmanchar umas roupinhas vindas da América para fazer uns trajes novos para as Festas.

Ao longo do caminho, Paulina, sempre ligeira, cantarolava, rezava, murmurava, pensava, desviando-se das pedras que os ferros dos burros deitavam ao chão.

« Se eu tivesse ido à América, como o Antonico, não andava agora por aqui, rolando os pés por estes caminhos... »

Os dias de Paulina eram sempre iguais.

Os filhos embarcaram para as terras frias do Canadá. O pai não lhes pôde mandar « papéis » para emigrarem para a Califórnia, essa sim, terra onde se fez muito dinheiro nas minas de ouro e de carvão, nos « farms » e nas vacarias.

« Coitadinhos...tiveram de abalar por esses mares fora! Estão a abrir caminhos de ferro, nas matas geladas daquela terra sem-fim... », lamentava-se Paulina, encostada à parede do balcão, contando à vizinha as novidades da última carta. « Estão penando muito... mais que o pai! Esse teve a sorte do seu lado. Trabalhou, mas amealhou e agora para que serve tudo? Andamos os dois p'raí, cada um para seu lado e a casa vazia, sem a alegria dos filhos e dos netos, coitadinhos, que nem os conheço. Sabes, Maria, penso que nosso Senhor me vai permitir essa graça...tenho pedido muito à Sra da Piedade.»

« Já se faz tarde para preparar a ceia. Se o Antonico chega a casa e não vê a mesa posta... ai Jesus, Senhor, valei-me! está o caldo entornado!...»

E temendo estes maus presságios, Paulina voava, vereda fora, saltando pedras e relheiras, protegida por paredes altas, pejadas de faias e incensos, onde se recolhiam melros e toutinegras, canários e pombos torcazes.

Paulina é o exemplo típico da mulher simples e laboriosa: dona de casa, mãe estremosa, submissa, respeitadora do marido e, simultaneamente, consciente da descriminação social de uma sociedade que considera como valores o que são atropelos à dignidade da mulher e da família.

Nos tempos por que passamos, é desejável e imperioso um retorno à sociedade rural. Os seus contornos, porém, terão de ser diferentes pois as mulheres já demonstraram que têm muito mais para dar do que a lida da casa e o cuidado dos filhos.

A sociedade rural tem de mudar a mentalidade antiga, sem perder valores fundamentais à afirmação da família.

1* Designação popular de Carta de chamada e contrato de trabalho


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